domingo, 24 de março de 2013

O TENDÃO DE AQUILES: MITO E REALIDADE


       Durante séculos, o nome de um herói mitológico grego vem sendo utilizado em duas expressões universalmente conhecidas: "calcanhar de Aquiles" e "tendão de Aquiles”. Enquanto a primeira é empregada em um contexto cultural mais amplo para descrever algum ponto físico ou psicológico frágil, a segunda representa um epônimo anatômico para um tendão que é, atualmente, discriminado na Nomina Anatomica como tendão do calcâneo. As expressões fazem referência à versão mais conhecida sobre a morte do guerreiro: Aquiles, com o corpo invulnerável exceto no tornozelo, teria morrido em decorrência de um ferimento que o atingiu exatamente nesse ponto. No presente trabalho, a mitologia de Aquiles e a anatomia do tendão do calcâneo são apresentas. Além disso, as possíveis causas da morte do guerreiro são discutidas resumidamente.

       Segundo Brandão (BRANDÃO, 1991a), o nome Aquiles (Akhilleús) é provavelmente pré-helênico e sua etimologia, embora desconhecida, está relacionada desde a antiguidade com ákhos (dor, aflição). Significaria, portanto, “o doloroso, o sofredor”. Aquiles é a figura central da Ilíada, que narra os acontecimentos ocorridos durante o décimo e último ano da Guerra de Tróia. “O mito de Aquiles é um dos mais ricos, antigos e complexos da antiguidade clássica. Graças à Ilíada, em que o filho de Tétis é citado duzentas e noventa eduas vezes, se popularizaram suas gestas. Poetas posteriores a Homero e o inconsciente popular apoderaram-se da personagem e multiplicaram-lhe as variantes do mito, a posto de se formar um autêntico ciclo de Aquiles, carregado de incidentes e episódios nem sempre coerentes” [id. 1991a]. As origens mitológicas da guerra de Tróia são remotas, resultando da disputa entre Zeus e Posídon pela a nereida Tétis. Um oráculo - para alguns, feito por Prometeu - vaticinara que o filho gerado por Tétis se tornaria mais poderoso que o pai e Zeus decidiu arranjar-lhe um marido mortal, Peleu. O casamento foi descrito muito depois pelo poeta latino Caio Valério Catulo (84 - 54 a.C) no poema LXIV, Bodas de Tétis e Peleu [id.,1991b.]: todos os imortais foram convidados e doaram presentes magníficos. Éris, a Discórdia, compareceu mesmo sem ser convidada e lançou, diante de Hera, Afrodite e Atena, a maçã de ouro, o famoso “pomo da discórdia”, com a maliciosa e provocativa inscrição: "a mais bela", desencadeando uma obstinada disputa entre as três deusas. Zeus incumbiu Hermes de conduzí-las ao monte Ida, onde seriam julgadas por Páris, cuja decisão, nas palavras de Homero, "lançou no Hades muitas almas valorosas de heróis" (Il. 1.3-4).
       Há diferentes versões para a morte de Aquiles. Peleu e Tétis já tinham gerado seis filhos, mortos quando Tétis, na tentativa de torná-los imortais, ungiu-os com ambrósia e os colocou sobre o fogo. Quando Aquiles nasceu, Tétis teria buscado fazê-lo imortal mergulhando-o no rio Estige; deixou-o, no entanto, vulnerável na parte do corpo pelo qual o segurava, seu calcanhar direito. Peleu entregou o filho ao centauro Quíron para que o educasse. Quando completou doze anos, o centauro iniciou seu adestramento na caça, equitação, música e medicina (id., 1991a).
       A morte de Aquiles não é descrita na Ilíada nem a alusão à invulnerabilidade de Aquiles se encontra em Homero. De fato, no canto 21 da Ilíada Aquiles é ferido por Asteropeu, que arremessa duas lanças ao mesmo tempo, uma das quais atinge o cotovelo de Aquiles, "tirando um jorro de sangue". Fosse invulnerável, ele não precisaria da armadura encomendada a Vulcano por Tétis. Esta havia recomendado fosse confiada ao sobrevivente mais digno de usá-la após a morte do filho. Os únicos pretendentes foram Ulisses e Ajax, sendo aquele o escolhido, “ficando a sabedoria, assim, acima da bravura e levando Ajax ao suicídio” (BULFINCH, 2000). Deste modo se entrelaçam “os dois fios das estórias contadas pela Ilíada (a glória de Aquiles) e pela Odisséia (o retorno de Ulisses). A morte natural de um Ulisses já velho, opulento e rodeado pelo seu povo então feliz constituirá um contraponto à morte trágica de um Aquiles jovem, em terra estrangeira, afastado dos seus familiares e de seu povo” (ASSUNÇÃO, 2003). As diferentes versões da morte de Aquiles são, portanto, posteriores a Homero. A mais difundida relata que ele morreu em combate, ferido no calcanhar vulnerável por uma flecha atirada por Páris e guiada por Apolo. Páris, nesse ato, vingaria a morte de seu irmão Heitor e, simultaneamente, a morte de Tenes, filho de Apolo. Em certas versões do mito, o próprio deus Apolo teria disparado a seta, e não Páris, considerado por demais covarde (BRANDÃO, 1991a).
       Os tendões eram conhecidos na medicina hipocrática. Lê-se na obra Sobre o Uso de Líquidos: “os ossos, os dentes, os tendões têm no frio um inimigo e no calor um amigo, porque é dessas partes que se originam os espasmos, o tétano, os calafrios febris, que o frio induz e o calor remove” (MAJNO, 1975). De acordo com KLENERMAN (2007), o termo tendão de Aquiles foi registrado pela primeira vez em 1699 por pelo anatomista belga Philip Verheyen (1648-1711), em lugar de tendo magnus de Hipócrates de autores mais antigos ou chorda hippocatrica de autores posteriores. Em sua obra Humani Corporis Anatomia; ele descreveu o tendão como era vulgarmente conhecido: "quae vulgo dicitur chorda Achillis" (Philip Verheyen, 2011). O termo foi adotado pela primeira vez em sua forma original francesa pelo cirurgião Jean-Louis Petit (1674-1750) em 1705 (MUSIL et al., 2011).
       O tendão do calcâneo, com cerca de 15 cm de comprimento e formado pelas aponeuroses do músculos gastrocnêmico e sóleo, é o maior e o mais poderoso tendão do corpo (MOORE & DALLEY, 2007a). Na sua decida até a tuberosidade do calcâneo espiralase em 90º e as fibras do gastrocnêmico se dispõem lateralmente, enquanto as do sóleo fixamse medialmente. Tal configuração, acredita-se, confere uma vantagem mecânica importante para a capacidade de o tendão absorver energia e se retrair (id., 2007a). O tendão do calcâneo é uma marca registrada do bípede humano, não ocorrendo em grandes primatas, e sua presença pode estar relacionada ao maior comprimento relativo do dos ossos do tarso no homem (KLENERMAN, 2007). Há cerca de dois milhões de anos, um conjunto diversificado de recursos, entre os quais se inclui o desenvolvimento do tendão do calcâneo, possibilitou a locomoção bipedal e a marcha de resistência, uma peculiaridade do gênero Homo (BRAMBLE & LIEBERMAN, 2004). Essas vantagens evolutivas podem ter sido fundamentais para a sobrevivência da espécie (RAICHLEN et al., 2011).
       Abroise Paré (1510-1590), o famoso cirurgião francês, foi o primeiro a descrever, em 1665, um caso de ruptura do tendão. Em 1724, o já referido Jean-Louis Petit relatou dois casos, sendo um bilateral. John Hunter (1728-1796) descreveu a ruptura de seu próprio tendão; na autópsia, observou-se calcificação no local da lesão. Foi o primeiro a estudar experimentalmente em cães a ruptura do tendão. Descrições de tenotomia aparecem no tratado "Sobre a cirurgia", do cirurgião grego Antyllus (século II dC), que realizou o procedimento para tratamento da anquilose de tornozelo. Frederick Louis Stromeyer (1804-1876) foi o pioneiro, nos tempos modernos, a utilizar a tenotomia para o tratamento do pé torto. “Lesões, tanto traumáticas como por uso excessivo do tendão de Aquiles já se tornaram relativamente comuns, e não é raro encontrar cirurgiões que, em sua carreira profissional, já operaram centenas de pacientes - e tudo isso a partir de um guerreiro mitológico grego” (KLENERMAN,2007).
       Em 1873, fazendo escavações no sítio arqueológico do Hissarlik, o arqueólogo alemão Heinrich Schliemann (1822-1890) encontrou várias cidades construídas em diferentes níveis e que ele considerou como a Tróia homérica. Apesar de o sítio arqueológico estar localizado na Anatólia, que corresponde hoje à porção asiática da Turquia, a idéia de que os níveis VI/VII correspondem a Tróia tornou-se firmemente estabelecida (KORFMAN, 2004). Vestígios arqueológicos levam a crer que houve vários conflitos armados em torno da cidade no final da Idade do Bronze, não sendo possível afirmar se todos ou apenas alguns destes conflitos foram registrados mais tarde na chamada “guerra de Tróia", ou se entre eles havia um especialmente memorável, uma única "guerra de Tróia". De qualquer forma, as ruínas de Tróia ainda deviam ser impressionantes no final do século VIII a.C., período em que, segundo se acredita, Homero compôs sua obra. Assim, não há nada no registro arqueológico que contradiga a afirmação de que Tróia e a paisagem circundante formaram o cenário para a Ilíada de Homero (KORFMANN, 2004). Aliás, o título da obra deriva do nome grego para Tróia, Ílion. Não se pode descartar, portanto, a hipótese de que tenha existido de fato um guerreiro, posteriormente mitificado na figura de Aquiles. Levando-se em consideração essa provável correspondência entre o mito e a realidade, uma pergunta se impõe: como poderia ter ocorrido a morte do guerreiro em decorrência do ferimento na região calcânea? LEE & JACOBS (2002) levantam várias hipóteses, que são ponderadas brevemente a seguir.
       Infecciosa: a ponta da seta poderia estar contaminada por bactérias como Clostridium perfringens, Yersenia pestis ou similares; a infecção da ferida e o desenvolvimento de gangrena ou osteomielite poderia ter sido fatal. Em qualquer dessas circunstâncias o tratamento era impraticável, pois o conceito de infecção de feridas era desconhecido dos gregos, só vindo ser estabelecido em 1867 por Joseph Lister (MAJNO & JORIS, 2004). A infecção pelo Clostridium tetani seria outra ocorrência possível. De fato, há relatos hipocráticos contendo descrições clínicas da doença (MAJNO, 1975), mas nas fontes mitológicas nada há que sugira ter Aquiles apresentado uma sintomatologia atribuível à infecção tetânica. De qualquer forma, é importante lembrar que, mesmo nos dias atuais, mais de um século após o desenvolvimento da vacina antitetânica (1924), não houve uma diminuição significativa da letalidade por tétano acidental (GOUVEIA et. al., 2009).
       Tóxica: a seta estaria envenenada; de fato, na Rapsódia I da Odisséia, há menção a uma viagem de Ulisses para Éfira “aonde fora, numa ligeira nau, em busca de veneno homicida para temperar o bronze de suas setas” (FIGUERÊDO-SILVA et al. 2010).
       Metabólica: se Aquiles sofresse de hipertireoidismo, - o que não parece ter sido o caso - talvez a dor e o estresse tenham desencadeado uma “tempestade tireoidiana”, com manifestações extremas de descompensação funcional e com um quadro clínico complexo.
       Congênita: embora nada indique isso, talvez Aquiles fosse hemofílico e uma lesão da artéria tibial posterior resultaria numa hemorragia fatal. De fato é improvável que uma hemorragia de grande porte tenha ocorrido por uma lesão exclusiva do tendão, uma vez que o mesmo é relativamente pouco vascularizado, sobretudo em sua porção média (DORAL et al., 2010). No entanto, a hemofilia não seria uma condição imprescindível. A artéria tibial posterior, o maior e o mais direto ramo terminal da artéria poplítea, pode ser facilmente lesada em ferimentos superficiais. Em bases puramente anatômicas, uma lesão da artéria e veia tibiais seria a causa mais verossímil da morte de Aquiles, ainda mais porque não havia tratamento eficaz para deter as hemorragias e a remoção de flechas sempre representou um problema para os feridos (KARGER et al., 2001).
       Imunológica: a seta, feita com uma infinidade de materiais, poderia ter desencadeado um episódio fatal de anafilaxia, desde que Aquiles fosse alérgico a qualquer um dos componentes.
       Traumática: uma embolia pulmonar após o ferimento poderia ter ocorrido. Finalmente, LEE & JACOBS (2002) mencionam duas possibilidades ainda mais ambíguas ou controvertidas. Psiquiátrica: Aquiles, após ter provado ser um grande guerreiro, encontrase repentinamente mutilado; sofre, então, um grave ataque de depressão e só encontra a paz pondo fim à própria vida. Evolutiva: incapaz de se mover depois de ter sido ferido, Aquiles torna-se um organismo "inadaptado", tendo sido morto no campo de batalha. É uma tentativa inapta de se aplicar o darwinismo. Para uma análise pertinente e aprofundada dos aspectos simbólicos da morte de Aquiles deve ser consultado o belo trabalho de ASSUNÇÃO (2003).
       Apesar, ou talvez em decorrência de sua importância em termos evolutivos, o tendão do calcâneo é propenso a um amplo espectro de lesões (LONGO et al., 2009).
       No mito de Aquiles, como em toda a obra homérica, se entrelaçam fatos históricos e elementos ficcionais, mas há indicações convincentes de que houve uma antiga Tróia e uma ou mais guerras de Tróia. Talvez um esplêndido guerreiro da época tenha sido mitificado na figura de Aquiles, cujo nome, apesar da distância dos séculos e das brumas da mitologia, continua famoso, tal como Homero predissera na Ilíada.




Bibliografia
ASSUNÇÃO, T.R. Ulisses e Aquiles repensando a morte (Odisséia XI, 478-491). Kriterion; vol. 44, p. 100-109, 2003.
BRAMBLE, D.M.; LIEBERMAN, D.E. Endurance running and the evolution of Homo. Nature, vol. 432, n.7015, p.:345-52, 2004.
BRANDÃO, J. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1991. v. 1, p. 97-104. _____.op. cit 1991b. v. 2, p. 438-439.
BULFINCH, T. O Livro de Ouro da Mitologia. Histórias de Deuses e Heróis. Trad. Jardim Jr D. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 272.
FIGUERÊDO-SILVA, J. et al. . Breve História do Tratamento das Feridas: I: A Medicina na Ilíada e na Odisséia. Anais do CRM-PI, vol. 12, p. 90-101, 2010.
GOUVEIA, P.A.C. et al. Tendência temporal do tétano acidental no período de 1981 a 2004 em Pernambuco com avaliação do impacto da assistência em unidade de terapia intensiva sobre a letalidade. Rev. Soc. Bras. Med. Trop. vol.42, n.1, p. 54-57, 2009.
HOMERO. Odisséia. Introdução e notas de Médéric Dufour e Jean Raison; tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural; 1979. p. 215.
KARGER, B. et al. Arrow wounds: major stimulus in the history of surgery. World J Surg, vol. 25, n. 12, p. 1550-1555, 2001.
KLENERMAN, L. The History of the Tendo Achillis and its Rupture. In: MAFFULY, N.; ALMEKINDERS, L.C. (Eds). The Achilles Tendon. London: Spring-Verlag Limited, 2007. p. 1-4.
KORFMANN, M. Was there a Trojan War? Archaeology, 57: 2004. Disponível em: http://www.archaeology.org/0405/etc/troy.html. Acesso: 10 set. 2011.
LEE C.C.; JACOBS, R.L. Achilles (The Man, the Myth, the Tendon). Iowa Orthop J. vol. 22, p. 108-109, 2002.
LONGO, U.G.; RONGA M, MAFFULLI N. Achilles tendinopathy. Sports Med Arthrosc. vol. 17, n., p.:112-26, 2009.
MAJNO, G. The Iatrós. In:______The Healing Hand: Man and Wound in the Ancient World. Cambridge, MA: Harvard University Press; 1975. p. 141-206.
MAJNO, G; JORIS. I. Introduction to Inflammation. In: ______. Cells, Tissues, and Disease: Principles of General Pathology. Oxford: Oxford University Press. 2nd ed. 2004; p. 307-332.
MOORE, K.L.; DALLEY, A.F. Anatomia Orientada para a Clínica. 5a Ed. Trad. ARAÚJO C.L.C. Rio de Janeiro: Guanabara, 2007a. p 597. _______.op. cit., 2006b, p 604-605.
MUSIL V. et al. Achilles tendon: the 305th anniversary of the French priority on the introduction of the famous anatomical eponym. Surg Radiol Anat. vol.33, n. 5, p.421-427, 2011
O'BRIEN, M. The anatomy of the Achilles tendon. Foot Ankle Clin, vol.10, p.225-238, 2005.
PHILIP VERHEYEN. In Wikipedia, The Free Encyclopedia. Flórida: Wikimedia Foundation, 2011. Disponível em: http://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Philip_Verheyen&oldid=415882527>. Acesso: 10 abr. 2011.
RAICHLEN, D.A.; ARMSTRONG, H.; LIEBERMAN, D.E. Calcaneus length determines running economy: Implications for endurance running performance in modern humans and Neandertals. J Hum Evol.,60: 299-308, 2011.
* Trabalho apresentado no I Congresso Piauiense de História da Medicina – Teresina/PI - 2013

Figuerêdo-Silva J; Gonçalves BM; Carvalho FV; Fonseca-Junior GC;
Oliveira LM; Bezerra RT – Teresina/PI

Nenhum comentário:

Postar um comentário