Durante
séculos, o nome de um herói mitológico grego vem sendo utilizado em duas expressões
universalmente conhecidas: "calcanhar de Aquiles" e "tendão
de Aquiles”. Enquanto a primeira é empregada em um contexto cultural mais
amplo para descrever algum ponto físico ou psicológico frágil, a segunda
representa um epônimo anatômico para um tendão que é, atualmente, discriminado
na Nomina Anatomica como tendão do calcâneo. As expressões fazem
referência à versão mais conhecida sobre a morte do guerreiro: Aquiles, com o
corpo invulnerável exceto no tornozelo, teria morrido em decorrência de um
ferimento que o atingiu exatamente nesse ponto. No presente trabalho, a
mitologia de Aquiles e a anatomia do tendão do calcâneo são apresentas. Além
disso, as possíveis causas da morte do guerreiro são discutidas resumidamente.
Segundo
Brandão (BRANDÃO, 1991a), o nome Aquiles (Akhilleús) é
provavelmente pré-helênico e sua etimologia, embora desconhecida, está
relacionada desde a antiguidade com ákhos (dor, aflição). Significaria,
portanto, “o doloroso, o sofredor”. Aquiles é a figura central da Ilíada, que
narra os acontecimentos ocorridos durante o décimo e último ano da Guerra de
Tróia. “O mito de Aquiles é um dos mais ricos, antigos e complexos da
antiguidade clássica. Graças à Ilíada, em que o filho de Tétis é citado duzentas
e noventa eduas vezes, se popularizaram suas gestas. Poetas posteriores a
Homero e o inconsciente popular apoderaram-se da personagem e multiplicaram-lhe
as variantes do mito, a posto de se formar um autêntico ciclo de Aquiles,
carregado de incidentes e episódios nem sempre coerentes” [id. 1991a]. As
origens mitológicas da guerra de Tróia são remotas, resultando da disputa entre
Zeus e Posídon pela a nereida Tétis. Um oráculo - para alguns, feito por
Prometeu - vaticinara que o filho gerado por Tétis se tornaria mais poderoso
que o pai e Zeus decidiu arranjar-lhe um marido mortal, Peleu. O casamento foi
descrito muito depois pelo poeta latino Caio Valério Catulo (84 - 54
a.C) no poema LXIV, Bodas de Tétis e Peleu [id.,1991b.]: todos os
imortais foram convidados e doaram presentes magníficos. Éris, a Discórdia,
compareceu mesmo sem ser convidada e lançou, diante de Hera, Afrodite e Atena,
a maçã de ouro, o famoso “pomo da discórdia”, com a maliciosa e provocativa
inscrição: "a mais bela", desencadeando uma obstinada disputa entre
as três deusas. Zeus incumbiu Hermes de conduzí-las ao monte Ida, onde seriam
julgadas por Páris, cuja decisão, nas palavras de Homero, "lançou no Hades
muitas almas valorosas de heróis" (Il. 1.3-4).
Há diferentes
versões para a morte de Aquiles. Peleu e Tétis já tinham gerado seis filhos, mortos quando Tétis, na tentativa de torná-los
imortais, ungiu-os com ambrósia e os colocou sobre o fogo. Quando Aquiles
nasceu, Tétis teria buscado fazê-lo imortal mergulhando-o no rio Estige;
deixou-o, no entanto, vulnerável na parte do corpo pelo qual o segurava, seu
calcanhar direito. Peleu entregou o filho ao centauro Quíron para que o educasse.
Quando completou doze anos, o centauro iniciou seu adestramento na caça,
equitação, música e medicina (id., 1991a).
A morte de
Aquiles não é descrita na Ilíada nem a alusão à invulnerabilidade de Aquiles se
encontra em Homero. De fato, no canto 21 da Ilíada Aquiles é ferido por Asteropeu,
que arremessa duas lanças ao mesmo tempo, uma das quais atinge o cotovelo de
Aquiles, "tirando um jorro de sangue". Fosse invulnerável, ele não
precisaria da armadura encomendada a Vulcano por Tétis. Esta havia recomendado
fosse confiada ao sobrevivente mais digno de usá-la após a morte do filho. Os
únicos pretendentes foram Ulisses e Ajax, sendo aquele o escolhido, “ficando a
sabedoria, assim, acima da bravura e levando Ajax ao suicídio” (BULFINCH,
2000). Deste modo se entrelaçam “os dois fios das estórias contadas pela Ilíada
(a glória de Aquiles) e pela Odisséia (o retorno de Ulisses). A morte natural
de um Ulisses já velho, opulento e rodeado pelo seu povo então feliz
constituirá um contraponto à morte trágica de um Aquiles jovem, em terra
estrangeira, afastado dos seus familiares e de seu povo” (ASSUNÇÃO, 2003). As
diferentes versões da morte de Aquiles são, portanto, posteriores a Homero. A
mais difundida relata que ele morreu em combate, ferido no calcanhar vulnerável
por uma flecha atirada por Páris e guiada por Apolo. Páris, nesse ato, vingaria
a morte de seu irmão Heitor e, simultaneamente, a morte de Tenes, filho de
Apolo. Em certas versões do mito, o próprio deus Apolo teria disparado a seta,
e não Páris, considerado por demais covarde (BRANDÃO, 1991a).
Os tendões
eram conhecidos na medicina hipocrática. Lê-se na obra Sobre o Uso de Líquidos: “os ossos, os dentes, os tendões têm
no frio um inimigo e no calor um amigo, porque é dessas partes que se originam os espasmos, o
tétano, os calafrios febris, que o frio induz e o calor remove” (MAJNO, 1975).
De acordo com KLENERMAN (2007), o termo tendão de Aquiles foi registrado pela
primeira vez em 1699 por pelo anatomista belga Philip Verheyen (1648-1711),
em lugar de tendo magnus de Hipócrates de autores mais antigos ou chorda
hippocatrica de autores posteriores. Em sua obra Humani Corporis
Anatomia; ele descreveu o tendão como era vulgarmente conhecido: "quae
vulgo dicitur chorda Achillis" (Philip Verheyen, 2011). O termo foi
adotado pela primeira vez em sua forma original francesa pelo cirurgião Jean-Louis
Petit (1674-1750) em 1705 (MUSIL et al., 2011).
O tendão do
calcâneo, com cerca de 15 cm de comprimento e formado pelas aponeuroses do
músculos gastrocnêmico e sóleo, é o maior e o mais poderoso tendão do corpo
(MOORE & DALLEY, 2007a). Na sua decida até a tuberosidade do calcâneo
espiralase em 90º e as fibras do gastrocnêmico se dispõem lateralmente,
enquanto as do sóleo fixamse medialmente. Tal configuração, acredita-se,
confere uma vantagem mecânica importante para a capacidade de o tendão absorver
energia e se retrair (id., 2007a). O tendão do calcâneo é uma marca registrada
do bípede humano, não ocorrendo em grandes primatas, e sua presença pode estar
relacionada ao maior comprimento relativo do dos ossos do tarso no homem
(KLENERMAN, 2007). Há cerca de dois milhões de anos, um conjunto diversificado
de recursos, entre os quais se inclui o desenvolvimento do tendão do calcâneo, possibilitou
a locomoção bipedal e a marcha de resistência, uma peculiaridade do gênero Homo
(BRAMBLE & LIEBERMAN, 2004). Essas vantagens evolutivas podem ter sido fundamentais
para a sobrevivência da espécie (RAICHLEN et al., 2011).
Abroise
Paré (1510-1590), o famoso cirurgião francês, foi o primeiro a descrever,
em 1665, um caso de ruptura do tendão. Em 1724, o já referido Jean-Louis Petit
relatou dois casos, sendo um bilateral. John Hunter (1728-1796) descreveu
a ruptura de seu próprio tendão; na autópsia, observou-se calcificação no local
da lesão. Foi o primeiro a estudar experimentalmente em cães a ruptura do
tendão. Descrições de tenotomia aparecem no tratado "Sobre a cirurgia",
do cirurgião grego Antyllus (século II dC), que realizou o procedimento
para tratamento da anquilose de tornozelo. Frederick Louis Stromeyer (1804-1876)
foi o pioneiro, nos tempos modernos, a utilizar a tenotomia para o tratamento
do pé torto. “Lesões, tanto traumáticas como por uso excessivo do tendão de
Aquiles já se tornaram relativamente comuns, e não é raro encontrar cirurgiões
que, em sua carreira profissional, já operaram centenas de pacientes - e tudo
isso a partir de um guerreiro mitológico grego” (KLENERMAN,2007).
Em 1873,
fazendo escavações no sítio arqueológico do Hissarlik, o arqueólogo alemão
Heinrich Schliemann (1822-1890) encontrou várias cidades construídas em
diferentes níveis e que ele considerou como a Tróia homérica. Apesar de o sítio
arqueológico estar localizado na Anatólia, que corresponde hoje à porção
asiática da Turquia, a idéia de que os níveis VI/VII correspondem a Tróia
tornou-se firmemente estabelecida (KORFMAN, 2004). Vestígios arqueológicos
levam a crer que houve vários conflitos armados em torno da cidade no final da
Idade do Bronze, não sendo possível afirmar se todos ou apenas alguns destes conflitos
foram registrados mais tarde na chamada “guerra de Tróia", ou se entre
eles havia um especialmente memorável, uma única "guerra de Tróia".
De qualquer forma, as ruínas de Tróia ainda deviam ser impressionantes no final
do século VIII a.C., período em que, segundo se acredita, Homero compôs sua
obra. Assim, não há nada no registro arqueológico que contradiga a afirmação de
que Tróia e a paisagem circundante formaram o cenário para a Ilíada de Homero
(KORFMANN, 2004). Aliás, o título da obra deriva do nome grego para Tróia, Ílion.
Não se pode descartar, portanto, a hipótese de que tenha existido de fato um guerreiro,
posteriormente mitificado na figura de Aquiles. Levando-se em consideração essa
provável correspondência entre o mito e a realidade, uma pergunta se impõe:
como poderia ter ocorrido a morte do guerreiro em decorrência do ferimento na
região calcânea? LEE & JACOBS (2002) levantam várias hipóteses, que são
ponderadas brevemente a seguir.
Infecciosa:
a ponta da seta poderia estar contaminada por bactérias como Clostridium perfringens,
Yersenia pestis ou similares; a infecção da ferida e o desenvolvimento
de gangrena ou osteomielite poderia ter sido fatal. Em qualquer dessas
circunstâncias o tratamento era impraticável, pois o conceito de infecção de
feridas era desconhecido dos gregos, só vindo ser estabelecido em 1867 por
Joseph Lister (MAJNO & JORIS, 2004). A infecção pelo Clostridium tetani seria
outra ocorrência possível. De fato, há relatos hipocráticos contendo descrições
clínicas da doença (MAJNO, 1975), mas nas fontes mitológicas nada há que sugira
ter Aquiles apresentado uma sintomatologia atribuível à infecção tetânica. De
qualquer forma, é importante lembrar que, mesmo nos dias atuais, mais de um
século após o desenvolvimento da vacina antitetânica (1924), não houve uma diminuição
significativa da letalidade por tétano acidental (GOUVEIA et. al., 2009).
Tóxica:
a seta estaria envenenada; de fato, na Rapsódia I da Odisséia, há menção
a uma viagem de Ulisses para Éfira “aonde fora, numa ligeira nau, em busca
de veneno homicida para temperar o bronze de suas setas”
(FIGUERÊDO-SILVA et al. 2010).
Metabólica: se Aquiles sofresse de
hipertireoidismo, - o que não parece ter sido o caso - talvez a dor e o
estresse tenham desencadeado uma “tempestade tireoidiana”, com manifestações
extremas de descompensação funcional e com um quadro clínico complexo.
Congênita:
embora nada indique isso, talvez Aquiles fosse hemofílico e uma lesão da artéria
tibial posterior resultaria numa hemorragia fatal. De fato é improvável que uma
hemorragia de grande porte tenha ocorrido por uma lesão exclusiva do tendão,
uma vez que o mesmo é relativamente pouco vascularizado, sobretudo em sua
porção média (DORAL et al., 2010). No entanto, a hemofilia não seria uma
condição imprescindível. A artéria tibial posterior, o maior e o mais direto
ramo terminal da artéria poplítea, pode ser facilmente lesada em
ferimentos superficiais. Em bases puramente anatômicas, uma lesão da artéria e
veia tibiais seria a causa mais verossímil da morte de Aquiles, ainda mais
porque não havia tratamento eficaz para deter as hemorragias e a remoção de
flechas sempre representou um problema para os feridos (KARGER et al., 2001).
Imunológica:
a seta, feita com uma infinidade de materiais, poderia ter desencadeado um
episódio fatal de anafilaxia, desde que Aquiles fosse alérgico a qualquer um
dos componentes.
Traumática:
uma embolia pulmonar após o ferimento poderia ter ocorrido. Finalmente, LEE
& JACOBS (2002) mencionam duas possibilidades ainda mais ambíguas ou
controvertidas. Psiquiátrica: Aquiles, após ter provado ser um grande
guerreiro, encontrase repentinamente mutilado; sofre, então, um grave ataque de
depressão e só encontra a paz pondo fim à própria vida. Evolutiva:
incapaz de se mover depois de ter sido ferido, Aquiles torna-se um organismo
"inadaptado", tendo sido morto no campo de batalha. É uma tentativa inapta
de se aplicar o darwinismo. Para uma análise pertinente e aprofundada dos
aspectos simbólicos da morte de Aquiles deve ser consultado o belo trabalho de
ASSUNÇÃO (2003).
Apesar, ou talvez em decorrência de sua
importância em termos evolutivos, o tendão do calcâneo é propenso a um amplo
espectro de lesões (LONGO et al., 2009).
No mito de
Aquiles, como em toda a obra homérica, se entrelaçam fatos históricos e elementos
ficcionais, mas há indicações convincentes de que houve uma antiga Tróia e uma ou
mais guerras de Tróia. Talvez um esplêndido guerreiro da época tenha sido
mitificado na figura de Aquiles, cujo nome, apesar da distância dos séculos e
das brumas da mitologia, continua famoso, tal como Homero predissera na Ilíada.
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