Em todas as épocas e em todos os lugares
existiram médicos. Doença ou saúde eram atribuídas à intervenção de seres
sobrenaturais: deuses ou Deus, espíritos e ou demônios, salvos os casos de
causas manifestas (uma hemorragia em conseqüência de um ferimento ou da mordida
de uma fera; uma fratura causada por acidente ou pela agressão de um inimigo). Assim
a cirurgia[1]
talvez seja a primeira prática médica que o homem exerceu espontaneamente, ao
tratar os ferimentos produzidos na caça e na guerra. Trechos do código de
Hamurabi (século XVIII a.C.), do papiro "cirúrgico" de Edwin Smith
(1700/1600 a.C.) e do livro de Susruta (século IX a.C.) relatam ferimentos,
instrumentos e procedimentos cirúrgicos.
Num segundo momento já na Idade Média, a
medicina cresceu ligada à Igreja, sendo fortemente influenciada pelas
convicções religiosas, os monges assumiram a arte de curar com medicamentos e
orações, as práticas cirúrgicas como lancetar abscessos e retirar pequenas
imperfeições da pele, foram deixadas para os barbeiros, que já lidavam com
instrumentos afiados como a navalha. Há um divórcio entre a cirurgia e a
medicina, os cirurgiões já não são médicos; sacerdotes não poderiam tocar em
sangue ou serem culpados pela morte de um homem de acordo com as crenças
cristãs da época (BOTELHO, 2004). O cirurgião adquire maior status no período
Renascentista, ainda que os médicos clínicos estivessem em uma posição
hierárquica superior até por volta do século XVIII quando novamente só os
médicos poderiam exercer a cirurgia.
A arte da cirurgia recebe impulsos
científicos e culturais nos séculos XVI e XVII com o melhor conhecimento a da
anatomia, com o aumento da variedade e gravidade das lesões produzidas nas
guerras, que nesta época já contavam com as armas de fogo. Porém os
procedimentos ainda eram limitados, pois os cirurgiões ainda não possuíam
conhecimentos ou meios adequados para
controlar a dor e a hemorragia, nem para combater a infecção. A medicina no
Brasil colônia foi em grande parte realizada por boticários e cirurgiões–barbeiros[2]
que popularizaram os remédios dos curandeiros indígenas e africanos. Raros
lugares contavam com um médico ou cirurgião formado. Em 1746, havia apenas seis
médicos formados na Europa nas regiões que hoje formam os estados de São Paulo,
Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás. A medicina praticada no Brasil
passaria por grandes mudanças a partir de 1808 com a transferência, forçada, da
corte portuguesa para a sua grande colônia americana. Foram criadas as
primeiras escolas médico-cirúrgicas do Brasil primeiro na Bahia e logo depois
no Rio de Janeiro (NAVA, 2004). É neste
cenário que se iniciará a medicina pré-científica[3]
na Capitania do Piauí, com a chegada a Oeiras, em 1803, de um Cirurgião-Mor da
armada portuguesa: José Luis da Silva, que aprendeu medicina no Hospital Real
de São José, de Lisboa, e, por fim abraçou a cirurgia, tendo sido nomeado para
o cargo de 1º Cirurgião da Armada em 1800. Estava vencida a fase do empirismo
absoluto, ficaram para trás os pagés, os jesuítas, os barbeiros e os
curandeiros. Podemos classificar de privilegiada a situação médica da capital
do Piauí no inicio do século XIX (CARVALHO JR, 2003).
A prática
cirúrgica no Piauí tem o inicio com a passagem por nossas terras do médico
naturalista inglês George Gardner em 1836, que em seu livro Viagem ao interior do Brasil(1846) narra
procedimentos cirúrgicos, como as operações de catarata e litotomia[4]
realizadas em Oeiras, que eram, bastante
avançados para a época, a anestesia ainda não havia sido descoberta. Somente 10
anos mais tarde, em 16 de outubro de 1846, seria realizada a primeira cirurgia
sob anestesia, nos Estados Unidos da América (SOURNIA, 1992).
Com os progressos da ciência e da
medicina ocorridos no século XIX e a transferência da capital da província para
Teresina em 1852, a
medicina e a cirurgia no Piauí também realizam seus avanços, acompanhando o
desenvolvimento mundial com a realização de operações cada vez mais complexas
como as primeiras operações Cesarianas,
no inicio da década de 30 e a primeira Colecistectomia[5]
realizada em 1933, pelo Dr. Rocha Furtado que mais tarde seria Governador do
estado. Mas, é em 1941, que a medicina e cirurgia no Piauí têm seu maior
impulso com a inauguração do Hospital Getúlio Vargas, grande e
moderno hospital, reflexo do ideário da revolução francesa que inspirou os
princípios dos direitos sociais colocando a saúde como um dever do estado e
direito do cidadão. Na cirurgia destaca-se o Dr. Rocha Furtado, chefe da
clinica cirúrgica e, pioneiro em diversas operações. Foi ainda criado o NEC
(núcleo de estudos cirúrgicos), grupo de estudos, para manter atualizados os
cirurgiões e que inclusive detinha assinatura de várias revistas estrangeiras
como Lance;, The American Journal of
Obstetric and Gynecology e Surgery,
Gynecology and Obstetric (SGO) entre outras, além de várias revistas
nacionais(FURTADO, 1990).
Mais tarde, em
1965, com o lançamento do desfio para a criação de uma Faculdade de Medicina do
Piauí que funcionasse atrelada ao HGV, o Dr. Zenon Rocha foi nomeado presidente
da comissão instituidora da faculdade, o funcionamento desta iniciou-se em
Janeiro de 1968 tendo como seu primeiro diretor e professor de cirurgia o
próprio Dr. Zenon Rocha, esmerado cirurgião, seguro nos conhecimentos
anatômicos e, perfeccionista nos atos.
A cirurgia no
Piauí cresceu sob a tutela de seus cirurgiões, atualizados nos avanços
tecnológicos e criadores de inovações; culminando nas operações por vídeo
laparoscopia. As primeiras operações deste tipo foram realizadas no Piauí em
1993 apenas 3 anos após operação pioneira no Brasil (1990) e poucos anos após as
primeiras operações com esta técnica surgirem no mundo.
Estes entre outros fatos tornam o estudo da história da
cirurgia no Piauí um campo fascinante. Se por um lado temos poucos dados sobre
esta área do conhecimento, chegando a inexistir textos específicos, há livros
que tratam da história da medicina no Piauí e que trazem informações que
despertam o interesse para um estudo mais aprofundado sobre o tema.
Andrade, F J C ––
Teresina/PI
BOTELHO, JOÃO BOSCO. História da Medicina - Da Abstração a
Materialidade. Manaus: Editora Valer. 2004.
CARVALHO JUNIOR,
DAGOBERTO F. A Obstetrícia No Piauí: Subsídios Para Sua História.
Teresina. 1998.
FURTADO, JOSÉ DA
ROCHA. Memórias e Depoimentos.
Teresina: Edição Academia Piauiense de Letras e Governo do Estado do
Piauí. 1990.
GARDNER, GEORGE. Viagem ao Interior do
Brasil - Principalmente nas províncias do norte e nos distritos
do ouro e do diamante durante os anos 1836/41. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo;
Itatiaia Editora. 1975.
GONÇALVES,
WILDSON C. Dicionário Enciclopédico Piauiense Ilustrado. Teresina:
Halley S.A. 2003.
NAVA, PEDRO. Capítulos da História da Medicina no
Brasil. São Paulo: Ateliê Editorial. 2004.
RAMOS, FRANCISCO
FERREIRA. Memorial do Hospital Getúlio Vargas – contexto
histórico-político-econômico-sócil-cultural 1500-2000. Teresina: Gráfica do
Povo. 2003.
REZENDE, JOFRE M. Linguagem Médica. 3ª edição. Goiânia: AB.
2004.
SANTOS, LUIS AIRTON (organizador). História da Medicina no Piauí.
Teresina: Edição Academia de Medicina do Piauí. 2003.
SOURNIA, JEAN
CHARLES. História da Medicina. Tradução
de Jorge Domingues Nogueira. Porto Alegre: Instituto Piaget. 1992.
[1]Joffre M. de Rezende - Linguagem Médica
Define cirurgia como o ramo da medicina que se
dedica ao tratamento das doenças, lesões, ou deformidades, por processos
manuais denominados operações ou intervenções cirúrgicas.
[2]
Boticários – precursores dos farmacêuticos. Cirurgiões-barbeiros – os barbeiros
por terem habilidade com instrumentos afiados, realizavam pequenas intervenções
cirúrgicas.
[3] A
medicina no Brasil só tornou-se verdadeiramente científica, com Osvaldo Cruz no
inicio do séc. XX
[4] Operação
de catarata consistia na abertura do olho para remoção do cristalino
opacificado. Litotomia – operação para retirada de cálculos da bexiga, através
de uma incisão na região do períneo.
[5]
Colecistectomia – operação para retirada da vesícula biliar
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